quarta-feira, 13 de agosto de 2025

RALI E AVENTURA NA CHAPADA GRANDE






RALI E AVENTURA NA CHAPADA GRANDE


Elmar Carvalho

 

Em virtude de estar respondendo pela Comarca de Arraial, durante as férias da titular, juíza Nazildes Santos Lobo, fui ontem a essa cidade. Preferi ir por dentro da Chapada Grande e retornar por Francisco Ayres e Amarante. Logo ao sair desta cidade de Regeneração, começou uma chuva, que, ora mais forte, ora simples chuvisco, durou toda a viagem. Em certos trechos, quando apenas serenava, aproveitei para tirar umas fotografias, que ficaram um tanto prejudicadas por causa da baixa luminosidade.

 

As folhagens estavam bem verdes, lustrosas, e os córregos já começavam a correr. Em certo ponto, pude escutar a estridência alegre de uma cigarra cantadeira, em dueto com um passarinho, que parecia louvar a chuva mansa que caía. Algumas “passagens molhadas” estavam realmente molhadas, com os riachos a passar sobre o concreto da construção. Os morros, colinas e chapadões verdejavam à distância. Redobrei o cuidado, temendo a picape escorregar sobre as ladeiras úmidas. Felizmente, não houve nenhum perigo e nenhuma derrapagem.

 

Essa viagem me fez lembar uma anterior, feita três anos atrás, em que fiz o mesmo périplo. Fui em companhia do soldado Pereira, hoje reformado, que na época estava à disposição da Justiça. Quando assumi a Comarca de Regeneração, ele era chamado apenas de Raimundinho; brincando, disse que ia promovê-lo a Pereira, seu apelido de família, porque esse nome impunha mais respeito, mormente em se tratando de um militar.

 

Após despachar os processos mais urgentes da Justiça estadual, fui até a serventia eleitoral. Lá, ao saber que eu iria voltar por Francisco Ayres e Amarante, o chefe do cartório, por duas ou três vezes, me recomendou que não passasse por cima de uma ponte de madeira, que estava danificada; que eu seguisse por um atalho que havia, e passasse pelo vau do rio. Fiquei um tanto preocupado, pois o “inverno” estava rigoroso na época. Em seguida, fui com o Pereira almoçar num dos restaurantes de Arraial.

 

Comemos um peixe delicioso. Pedi a conta à dona do estabelecimento. Ela deu o preço. Quando eu ia puxar a carteira de cédulas, ela refez o cálculo, dizendo que havia esquecido de incluir uma Coca-Cola; quando, novamente, eu me preparava para sacar o dinheiro, ela voltou a alterar a conta, alegando que não incluíra uma cerveja; na terceira vez, não vacilei, e lhe coloquei o dinheiro na mão, antes que ela alterasse o preço, como sempre para um valor mais elevado.

 

Quando ela processava os dados mentalmente, levantava os olhos para cima, revirava-os, como se em busca de inspiração. Mas foi um preço justo, porquanto a comida estava realmente saborosa. No restaurante, voltei a encontrar o chefe do Cartório Eleitoral, que nele fazia as refeições. Novamente, ele me advertiu que, em hipótese nenhuma, passasse sobre a ponte.

 

Imediatamente, seguimos em direção a Francisco Ayres. Imprimi uma velocidade razoável, mas tendo em vista que a estrada era cheia de curvas e ladeiras, e recoberto  o seu leito com a traiçoeira piçarra, propícia a derrapagens. Quando menos esperei, vi a famigerada ponte à minha frente. Não tive dúvida, pisei no freio. A picape quase fazia um “cavalo de pau”. Manobrei em direção ao atalho. Para minha decepção, a correnteza do rio estava violenta, e não havia a menor condição de atravessá-la. Quando eu já me preparava para retornar, e fazer o percurso pela Chapada Grande, o que me causaria um considerável prejuízo de tempo e combustível, enxerguei um rapaz numa motocicleta, que vinha em sentido contrário.

 

Esperei que ele chegasse até nós. Com firmeza, ele me garantiu que eu poderia passar por cima da ponte, pois na manhã daquele dia um caminhão do tipo ¾ passara sobre ela. Agradeci ao motociclista, e me preparei para enfrentar o desafio. As vigas trepidaram, estalaram, gemeram e rangeram como a moenda do poema de Da Costa e Silva, balançaram, mas não caíram. Exultante, ultrapassei aquela geringonça desengonçada e capenga, em que a ponte, verdadeira arapuca, havia se convertido.

 

Quando atravessei a cidade de Francisco Ayres, novo desafio me esperava. O rio Canindé, naquela forte estação chuvosa de três anos atrás, estava cheio, com as águas correndo fortemente sobre o paredão da barragem, como se este fosse o sangradouro. Era por ali que eu deveria passar. Não vou mentir, fiquei com medo. Perto da barragem existia o esqueleto de uma ponte inacabada. Do local se viam as vigas e pilastras de concreto do que deveria ser uma ponte. Lamentei tanto descaso, tanto desperdício de dinheiro público, já que aquele monstrengo de cimento para nada servia.

 

Ante o inelutável, perguntei a um pescador se dava para passar sobre o paredão da barragem. Respondeu-me que sim. Indaguei-lhe, em tom de brincadeira, se ele garantia; retrucou-me que não, mas que há poucos minutos um automóvel passara sobre a barragem. Aduziu que eu deveria me nortear pelo “caculo” da água, na borda esquerda do paredão. Manobrei o carro em direção à barragem, sem enxergar o piso por onde passaria, e sem ter noção da profundidade da lâmina d' água que o recobria. Quando estava no meio do percurso, olhei, de esguelha, o bravo Pereira, com a água a turbilhonar na borda esquerda da barragem e a despencar no abismo do lado oposto.

 

Sua pele da cor do ébano tomara uma cor que se aproximava da tonalidade das garças.  É claro que estou brincando. Afinal, o soldado Pereira faz jus ao nome que ostenta. Como dizia o senhor Augusto Pereira, pereira é pau amargoso, é madeira de lei, é cacete de dar em doido. Que os doidos e os politicamente corretos, mais reais do que os reis, não me leiam.

 

Graças a Deus, escapei são e salvo desse verdadeiro rali improvisado pelas ladeiras, montes, chapadões, abismos, veredas e pinguelas dessa Chapada Grande de tanta beleza e encantamento. 

14 de dezembro de 2010

terça-feira, 12 de agosto de 2025

OBSERVANDO O COSMO

 

Imagem criada pela IA Gemini, seguindo minhas instruções

Fonte: Google



OBSERVANDO O COSMO

 

Elmar Carvalho

 

De algum ponto não muito iluminado dos arredores de Teresina, à boca da noite, fomos observar a Lua e outros astros. Éramos um grupo de seis pessoas. Nosso guia e mestre era o médico e astrônomo amador Aluísio Amorim Andrade.

Disse amador apenas no sentido de que ele não exerce a profissão de astrônomo. Entretanto, é um profundo conhecedor e estudioso do cosmo e efetivamente ama observar a Lua, as estrelas e os planetas. Era fácil perceber-lhe o entusiasmo enquanto nos ensinava e falava da grandiosidade e da maravilha do cosmo, das galáxias, das constelações e de outros mistérios insondáveis do universo.

Os outros integrantes do grupo éramos eu; a médica Naiara da Costa Sobral Andrade e o estudante de medicina Daniel Sobral Andrade (esposa e filho de Aluísio, respectivamente); e o escritor e médico Edilson Carvalho Jr., acompanhado de sua esposa, Carmen Milena Rodrigues Siqueira Carvalho.

Era uma esplêndida noite de plenilúnio. O nosso satélite ostentava toda a glória de sua beleza. O céu apresentava poucas nuvens, que apenas serviam para ocultar levemente a Lua por breves momentos, para nos deslumbrar quando ela reaparecia ainda mais bela.

Lembrei-me então de minha infância, quando minha saudosa e excelente mãe, para aguçar minha imaginação e me proporcionar momentos mágicos, dizia que a Lua estava trocando de roupa. Quando, nas noites frias, formava-se um halo ao seu redor, mamãe afirmava que ela estava tomando banho numa lagoa. Ó ditosos tempos de minha meninice, “que os anos não trazem mais”...

Aluísio Amorim Andrade foi um verdadeiro cicerone e nos proporcionou uma viagem cosmológica. Assim como o poeta Virgílio conduziu Dante, na Divina Comédia, pelos círculos infernais, ele nos guiou pelos páramos celestiais — o que me fez lembrar do meu poema Viagem, em que simulei um périplo pelo infinitamente grande e pelo infinitamente pequeno. Transcrevo apenas estes poucos versos:

“surfo nos mares lunares

e desvendo os enigmas

da face nunca revelada

em seu véu de eterna treva

combato o hálito de fogo do dragão

cavalgando lado a lado com São Jorge”

Mas, ao contrário do que digo no trecho acima, não vi São Jorge e muito menos o pavoroso dragão. Aliás, disse aos amigos do grupo de observadores que não pretendo mais discutir assuntos de astronomia e astrofísica com o confrade Prof. Jônathas Nunes, com medo de ser sugado por um buraco negro ou de cair num buraco de minhoca e ir parar numa outra, desconhecida, dimensão.

Quando nosso guia nos mostrou os caminhos de Santiago e do Zodíaco, não me contive e aproveitei para lhes torrar a paciência com este meu poema, escrito há muitos anos:

AUTOBIOGRAFIA ZODIACAL

 

Sou do signo de

 Carneiro

Mas meu coração é um

 Touro indomável

No meu sangue

corre a fúria de

 Leão

Entre uma Virgem e duas

 Gêmeas

Meu coração / bala

   Balança

Sou um Câncer

nos chifres de

 Capricórnio

Sou Peixes libertário

sem o cárcere de um

 Aquário

Sou Sagitário

 a

  r

   m

    a

     arco e flecha

    d

   o

  d

 e

(A flecha é uma cauda de Escorpião)

Tive o ensejo de lhes dizer que, nos meus PoeMitos da Parnaíba, em que falei de figuras populares, engraçadas ou anedóticas dessa mítica cidade de meu encantamento, tracei um breve perfil do Boa Ideia, que, segundo soube, chegou a se corresponder com cientistas da NASA. Desse poema, transcrevo os versos abaixo:

“Galileu Galilei da Parnaíba

construiu sua luneta

desvendou estrelas e planetas e cometas

e perscrutou os umbrais do infinito.

Autodidata da astronomia

com seu telescópio passeava

pelos “mares” da Lua

dizendo coisa com coisa

que ninguém sabia.

Brincava de bambolê

com os anéis de Saturno.”

Quando o Dr. Aluísio chegou ao “observatório” e retirou seus potentes instrumentos, o meu acanhado telescópio teve tremor e temor, encolhendo-se todo, recolhido em sua modéstia, como se fosse um canarinho-belga diante de um belicoso e grande canário verdadeiro. Depois recobrou o ânimo quando nosso mestre disse que ele era suficiente para os fins que eu desejava.

Em seguida, com sábia didática, utilizando uma mira de raio laser, Aluísio nos mostrou algumas constelações e aglomerados de estrelas. Com sua longa manus de longos dedos de luz, ele nos fez passear pelo lindo céu salpicado de astros, no qual sentimos a Glória do Criador.

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Regando o Meu Pai

Fonte: Google


Regando o Meu Pai

 

Fabrício Carvalho Amorim Leite

 

Hoje foi Dia dos Pais.

Se fosse qualquer outro dia, talvez fosse apenas ruim.

Mas começar uma data assim, já carregada de ausência, é como amanhecer com o peso de uma pedra no peito.

 

O meu pai, há pouco, mudou-se para aquele jardim.

 

Pensei, num desvio quase onírico, se seria o Éden, ou alguma paisagem inventada pela memória.

No fundo, era só um buraco enfeitado. Uma moldura para o invisível.

Um ponto fixo onde ele habitava agora, dissolvido em silêncio e matéria orgânica.

 

Olhei a grama verde e, por um instante, o vi. Menos triste, mais inteiro.

Ele sempre gostou de plantas.

Pássaros giravam no ar, pousando perto, como se partilhassem a solidão do dia.

 

Meu pai agora era grama.

E o funcionário do cemitério, ao regar o gramado, regava o meu pai.

 

Ali, repousava também um jovem pai: o meu irmão, que foi pai e filho. Ao menos, naquele dia, estiveram juntos: grama e terra.

Os pássaros encerravam seu banquete de insetos, de pequenos seres rastejantes e voadores,

enquanto o vento levava restos de asas invisíveis pelo ar.

 

Um dia, serei eu também terra, grama, pó, pássaro, inseto e o que mais couber no ciclo desse lugar.

 

O sino das seis tocou longe, mas atravessou o vento até mim, açoitando o corpo já envergado. E, ali, saudades viraram lágrimas. E nada mais.

 

Agosto, 2025   

domingo, 10 de agosto de 2025

EGOCENTRISMO


Criação: IA Gemini


EGOCENTRISMO


Elmar Carvalho

 

     espirrei

na réstia de luz

da janela do meu quarto

e fiz surgir um

                  arco-íris

                  arco-do-triunfo

sob o qual

napoleonicamente passei

sobre o qual caminhei

em busca do

                        velocino de ouro

coroado com o l’ouro

de minha própria

      alquimia

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

LANÇAMENTO DE NOTURNO NA NOITE OEIRENSE

 




LANÇAMENTO DE NOTURNO NA NOITE OEIRENSE          


Elmar Carvalho

 

O livro Noturno de Oeiras e outras evocações já estava editado fazia alguns meses. Por motivos que não quero declinar, alheios à minha vontade, ainda não fora lançado. Mas tudo tem seu tempo, como diz a Bíblia. Certo dia de sábado, uma comitiva do Instituto Barros de Ensino – IBENS, procedente da velha capital, veio visitar a Academia Piauiense de Letras. Tive a oportunidade de contar para as diretoras do educandário essa situação. Elas me disseram, sem que eu nada pedisse, que fariam o lançamento da obra; que oportunamente me comunicariam a data.

 

Em poucos dias, para minha grata surpresa, a direção do IBENS me contactou e disse que o evento poderia ser feito no dia 3 de dezembro. Combinamos que o apresentador seria o autor do prefácio, o escritor e advogado Moisés Reis, que aceitou a incumbência. No dia marcado, cheguei a Oeiras, na companhia de meu pai e do Zé Francisco Marques. Fomos hóspedes do empresário Miguel Machado, campomaiorense, mas radicado na velhacap, e de sua mulher Dalva, oeirense.

 

O evento foi incluído dentro do Projeto “De Poeta, de Músico e de Louco em Oeiras todos têm um pouco”, que este ano homenageou o médico e escritor Dagoberto Carvalho Jr., um dos mais proeminentes ecianos, sobre o qual já escrevi mais de um texto e de quem tive a honra de prefaciar a mais recente edição da obra prima Passeio a Oeiras. A solenidade aconteceu na Praça da Inocência, na frente do IBENS, à boca da noite, como se dizia outrora. Compareceu um público expressivo e seleto. Quando cheguei, Moisés Reis foi logo me dizendo estar satisfeito com a quantidade de pessoas e com o fato de que havia muitos jovens na plateia.

 

Fui recebido pelos dirigentes do Instituto Barros de Ensino, entre os quais se encontrava o patriarca Geraldo Barros, genitor dessa bela estirpe de educadores, entusiastas da causa da cultura e da educação em sentido integral, e não apenas meros repassadores de conteúdo. A diretora Magda Barros fez a apresentação, seguindo um belo e elucidativo script, com roteiro pertinente e bem planejado. Um grupo de alunos do IBENS recitou poemas e fez uma excelente performance do poema Noturno do Cemitério Velho de Oeiras, com todos os intérpretes trajando vestes negras.

 

Francisco Barroso o musicou, e de forma tão feliz que o público acompanhou a música com palmas vibrantes e sincronizadas. A simpática e amável garota Juliana Barros nos encantou com a virtuosidade de sua dança, quase levitação artística. Moisés Reis estava “impossível”, inspirado como sempre, e excedendo-se a si mesmo fez um notável improviso, em que analisou, com argutos olhos de Argos, os textos e teceu comentários percucientes sobre o autor. Apenas cometeu o compreensível pecado de enaltecer meu livro além do que ele merecia, por força de sua lhaneza e generosidade. Quando fui chamado ao palco monumental, disse que pouco tinha a dizer, após o que Moisés falara; que o que deveria falar estava consignado no meu livro; que apenas tinha muito a agradecer.

 

E agradeci ao IBENS pela promoção da festa literária, à comitiva que viera de Regeneração, composta por Alfredo Nunes, Tiago Junqueira e Nileide Soares, e à comitiva campomaiorense, integrada por meu pai,  por Zé Francisco Marques e pelo empresário Miguel Machado, pela consideração da presença. A sessão de autógrafo foi deveras concorrida, mas minha caneta não regateou tinta. O promotor de Justiça Carlos Rubem, sempre prestativo e dinâmico, sobretudo no que se refere à arte e à cultura, fez uma verdadeira reportagem fotográfica; por isso mesmo, no autógrafo, o rotulei de promotor de Justiça e de Cultura. Em suma, foi uma magnífica noite de arte, música e literatura.

 

Não pude deixar de comemorá-la, degustando uma cerveja, no emblemático e simpático Café Oeiras; estavam presentes Miguel Machado, sua esposa Lindalva Elisa, Zé Francisco e  meu pai. Eis que de repente, fui abordado por Zé Carlos, que sem pruridos de falsa modéstia disse ser o maior goleiro de Oeiras, e ter barrado os maiores goleadores do futebol nacional, inclusive o nosso Simão Teles Bacelar, o legendário Sima, o maior artilheiro do Piauí. Por isso, pediu-me para lhe escrever a biografia. Disse-lhe ser um colega menor, conquanto nunca tenha engolido “frangos” escandalosos.

 

Tive o cuidado de perguntar ao Carlos Rubem se Zé Carlos, realmente, fora o maior golquíper da velhacap. Reservo-me, todavia, o direito de não revelar o teor da resposta. Autografei-lhe um exemplar. E dei por encerrada na madrugada oeirense – em que a brisa me afagava a pele, muito macia e muito levemente, como carícia de pávido fantasma de mulher – o meu périplo e peripécia cultural no encantado sertão dos confins do Mocha.     

8 de dezembro de 2010

terça-feira, 5 de agosto de 2025

O ENIGMA DESVENDADO

Criação: chatgpt

Criação: IA Gemini



 

O ENIGMA DESVENDADO

 

Elmar Carvalho


Para minha grande satisfação, recebi hoje a seguinte mensagem do escritor e poeta Marcondes Araújo, que sabe aplaudir com entusiasmo os eventuais méritos alheios:

“Amigo, hoje reli seu poema "Enigma" e não resisti em comentá-lo em versos. Peço licença pra te apresentar, minha sutil leitura do seu pulsante poema.”  

Segue abaixo o poema que ele me encaminhou:

“Enigma do Elmar

Como desvendar sumo sentimento

Que guardas consigo em mistério

Se o que sugeres tão etéreo

Vai além do meu vão discernimento?

  

Navegando entre sono e sonho

Fragmentado em matéria versátil

Ora triste, ora risonho

Perco-me em teu enigma volátil.

 

 Então, quedo-me atônito e silente

Encantado e com vultoso fascínio

Da esfinge onde impera o domínio

De um coração que pulsa efervescente.”

 

Disse-lhe, por áudio, que o seu texto não era uma paródia, pelas razões que lhe expliquei, mas uma paráfrase, e que o considerava como uma grande homenagem ao meu poema, tendo Marcondes Araújo me respondido desta forma:

“Sim, minha intenção foi parafrasear. Na verdade, ousei parafrasear. Naturalmente não sei se consegui ter sua aprovação. Foi singelamente pra você e em sua homenagem. É seu e esteja à vontade para apagar ou publicar.”

Caro amigo, você conseguiu fazer até mais do que uma bela paráfrase. Conseguiu extrair um novo e excelente poema. Como você disse tê-lo feito em homenagem a este velho bardo, devo lhe dizer que lhe fico muito agradecido.

O Enigma foi desvendado, mas a Esfinge não enlouqueceu e nem se devorou a si mesma.

Muito obrigado, caro Marcondes. Deus lhe pague!  

P. s.: para completar o meu contentamento acabo de receber [08/08/2025] uma mensagem zapiana do amigo Joames, um dos maiores cordelistas piauienses, que reproduzo abaixo:

            Os seus poemas Elmar,

            Causam-me tanto suspence, 

            Enigma vai muito além 

            Do saber que me pertence,

            Mas leio tudo absorto,

            Sentindo maior conforto 

            Em "Noturno Oeirense".

                    (Joames).

UM CERTO CAPITÃO RODRIGO

Fonte: Google


UM CERTO CAPITÃO RODRIGO

 

Carlos Evandro M. Eulálio*

 

O capitão Rodrigo é a principal personagem que surge em um dos capítulos do primeiro romance, O Continente, da trilogia de Érico Veríssimo O TEMPO E O VENTO. Dessa trilogia fazem parte ainda os romances O Retrato e O Arquipélago. 

Saga de personagens gaúchos, cuja trama se desenrola em torno do povoado Santa Fé e de uma família (os Terra-Cambará), no período que vai de 1745 a 1945. Na obra O Continente, aparecem as gerações Terra-Cambará, famílias da oligarquia local que participam da fundação e desenvolvimento histórico do povoado Santa Fé. 

A trilogia apresenta o conflito das gerações: portugueses e castelhanos nos tempos coloniais; farrapos e imperiais durante as lutas separatistas; maragatos e florianistas sob a Revolta da Armada, em 1893. Nessa trilogia, vemos a história de duas famílias, os Terra-Cambará e os Amaral, atravessando dois séculos de vida.

 

ESTRUTURA DA OBRA

 

Com narrador onisciente, a obra constitui-se de 28 capítulos narrados linearmente, sem digressões. O cenário é a cidade fictícia de Santa Fé, no Rio Grande do Sul. Santa Fé é uma construção literária, um espaço criado pelo autor para dar vida à sua narrativa, e não uma localidade real do Estado do Rio Grande do Sul.  O tempo é rigorosamente cronológico, marcado por datas e acontecimentos históricos.

Tem como personagens o Capitão Rodrigo Cambará, gaúcho exaltado, pândego, bravo, alegre e decidido; Bibiana, filha de Pedro Terra. Criada para o casamento. Obediente ao pai, mas o contraria quando se decide casar com Rodrigo Cambará. Aprendera com a avó Ana Terra a avaliar as pessoas. Com ela também aprendeu a fiar, bordar e a fazer doces; Pedro Terra, filho de colonos. Autoritário, íntegro. Muito parecido com a mãe, Ana Terra, quanto ao modo de agir; Padre Lara, personagem que acompanha de perto o conflito das famílias Amaral e Terra-Cambará, é apaziguador, amigo de Rodrigo Cambará. Sente-se responsável pelo casamento de Bibiana; Juvenal Terra, filho de Pedro Terra é sócio e amigo de Rodrigo que por sua vez é desafeto de Bento Amaral; Coronel Ricardo Amaral Neto, autoridade do lugar, é acusado de crimes de emboscadas e apropriação de terras alheias. Adversário político de Pedro Terra.

 

UM CERTO CAPITÃO RODRIGO: Sequências Narrativas

 

Em 1828, chega a Santa Fé o Capitão Rodrigo Cambará, aos 30 anos de idade, causando apreensão ao povo do lugar, por suas maneiras exóticas e arruaceiras. Da venda do Nicolau chama a atenção dos detentores do poder da cidade:  Cel. Ricardo Amaral Neto, e do filho deste, Bento Amaral. Rodrigo é aconselhado por Juvenal Terra e pelo padre Lara a deixar a cidade. O capitão decide ficar por conta própria, principalmente porque se interessa por Bibiana, filha de Pedro Terra e irmã de Juvenal, embora soubesse que Bento Amaral tinha pretensão de casar-se com ela.

Na festa de casamento da filha de Rosa, prima de Pedro Terra, Rodrigo convida Bibiana para dançar com ele. É preterido por Bento Amaral com ameaças. Os dois se desentendem e partem para um duelo com adaga. Na luta, num gesto de traição, Bento Amaral usa arma de fogo e atinge o adversário. Gravemente ferido, Rodrigo é levado para a casa de Juvenal, onde se recupera.

 

Rodrigo pede Bibiana em casamento. Pedro Terra opõe-se, no que é persuadido a consentir, por insistência do Padre Lara e Juvenal, que lhe garantem ser Rodrigo bem-intencionado, disposto inclusive a pôr comércio em sociedade com o futuro cunhado. Assim, Rodrigo Cambará casou-se pelo Natal de 1829 com Bibiana Terra. 

Os modos de Rodrigo fazem com que Pedro Terra fique cada vez mais distante dele. No ano de 1830, nasce Bolívar, primeiro filho do casal. A rotina do casamento e a atividade comercial começam a entediar Rodrigo que propõe a Juvenal ir ao Rio Pardo, a fim de comprar o próximo sortimento da loja. Juvenal acha que Rodrigo tem a intenção de correr mundo e que provavelmente não retornaria. 

No ano seguinte, Pe. Lara escreveu no seu registro: “Aos vinte e oito de dezembro de mil oitocentos e trinta e um nesta capela de nossa senhora da Conceição batizei e dei os Santos Óleos a Anita, filha legítima do Cap. Rodrigo Severo Cambará, natural da freguesia do Rio Grande, e de sua mulher Bibiana, natural desta freguesia”. Pedro Terra não compareceu ao batizado.

Pedro Terra se afasta cada vez mais do genro, cujo comportamento ultimamente se havia deteriorado de tal maneira que era, por assim dizer, o assunto predileto de Santa Fé. Gastava o que não possuía com jogo, bebida e mulheres. Morre Anita. No ano seguinte, nasce o Leonor, a filha caçula do casal.

Em 1833 corre a notícia de que no ano seguinte o povoado de Santa Fé seria elevado à vila. Politicamente o país vive o período da Regência (1831 a 1840), durante o qual, sendo Pedro II menor de idade, deveria ser governado por um Conselho de três regentes. Na falta da figura centralizadora do Imperador, o Brasil passa por uma experiência que se poderia chamar de republicana, com as províncias reivindicando autonomia de governo, com rebeliões e revoltas eclodindo de norte a sul do País. Vários desses movimentos lutavam pela adoção do regime republicano, como foi o caso da Revolução Farroupilha que se instalou no Rio Grande do Sul em 1835 e que só foi sufocada em 1845, já no II Reinado. Por esse tempo, Liberais (farroupilhas) e restauradores (galegos, caramurus) confrontam-se nas ruas de Santa Fé. 

Em 1835 começam os rumores da guerra. O cel. Ricardo Amaral propõe na Câmara de Santa Fé que esta faça uma proclamação jurando fidelidade ao governo. Pedro Terra é contra, sendo, por essa razão, preso e libertado em seguida, na condição de não se afastar de Santa Fé. Também é decretada a prisão do Cap. Rodrigo Cambará que se encontra foragido, já como um dos líderes dos farrapos. 

Em 1836 a revolução chega a Santa Fé. Rodrigo Cambará lidera um contingente de revoltosos que toma de assalto o casarão do Cel. Ricardo. Rodrigo é morto com uma bala no peito. O cel. Ricardo também morre.  Bento Amaral consegue escapar e foge de Santa Fé.

 

* Carlos Evandro Martins Eulálio é formado em Letras (Português-Literatura), com mestrado em Educação (UFPI). Ocupa a cadeira 38 da Academia Piauiense de Letras.

 

Referência

VERÍSSIMO, Érico. Um certo capitão Rodrigo. 39ª ed. São Paulo: Globo 2000.   

domingo, 3 de agosto de 2025

ENIGMA

Criação: AI Gemini


ENIGMA


Elmar Carvalho

 

entre o som

          o sono

          o sonho

          a sombra e a sobra

eu me decomponho

     em escombros

em farpas e agulhas

       escarpas e fagulhas

                                          desfeito enfim

                                          em fogos de artifício

                                          feito estrelas de mim

esfinge autoantropofágica que

não se decifrou e que a si

mesma se devorou

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Des. Roberto Veloso recita Noturno de Oeiras

 



Ontem (31/07/2025), tive a satisfação de receber, por WhatsApp, uma fotografia de meu amigo e irmão maçônico Roberto Veloso, na qual ele apontava para a minha foto na galeria da Academia Piauiense de Letras, onde se encontrava com a finalidade de adquirir algumas obras publicadas por essa centenária entidade cultural e literária.


Convidei-o a participar de nossa reunião de sábado, mas ele me respondeu que não poderia fazê-lo, em virtude de já estar de saída para Oeiras. À noite, recebi o vídeo acima, em que ele recita o meu poema Noturno de Oeiras.

Décadas atrás, em cenário penumbroso e silente, tarde da noite, ele, de memória, com sua voz grave e potente, imprimindo-lhe um timbre vibrante e levemente cavernoso, impressionou uma pequena plateia, criando um clima algo fantasmagórico.

O desembargador federal Roberto Carvalho Veloso foi meu colega no curso de Direito (UFPI) e, no futebol amador, foi, assim como eu, considerado um bom goleiro. É meu confrade na Academia Maçônica de Letras do Piauí, presidida pelo Grão-Mestre Valdeci Cavalcante.    

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Do Devaneio Estético ao Delírio Tecnosexual: uma leitura comparativa dos contos Diva (1983) e Ferro na Boneca (2025), de Elmar Carvalho

 

Criação: AI ChatGPT

Do Devaneio Estético ao Delírio Tecnosexual: uma leitura comparativa dos contos Diva (1983) e Ferro na Boneca (2025), de Elmar Carvalho


Na semana passada, conversando virtualmente com meu virtuoso amigo professor Reginaldo Soares, um dos fundadores e líderes da Associação dos Deficientes Visuais de São Miguel do Tapuio (PI), a respeito do meu conto Ferro na Boneca, disse-lhe que o embrião dele era o conto Diva, de minha autoria, que o jornal alternativo Inovação publicou em 1983.

Nesse conto eu falava na angústia, na solidão e em outros problemas existenciais de um escultor, que terminou entrando numa espécie de depressão e esquizofrenia, que o levaram a se apaixonar por uma de suas esculturas.

Devo dizer que havia conversado, meses atras, com o Reginaldo Soares sobre o meu projeto de escrever Ferro na Boneca, que se encontra publicado no meu blog. Acrescentei que acharia interessante um estudo comparativo sobre esses dois contos.

Por essa razão, fiz a seguinte proposta à IA GPT: “Gostaria que você fizesse um estudo ou comentário comparativo entre o conto acima,  publicado em 1983, e o conto abaixo, escrito em 2025, ambos de minha autoria. Leve em conta a minha idade e o contexto histórico e tecnológico.”

A Inteligência fez um cotejo entre os dois textos e depois me perguntou se eu não gostaria que ela fizesse um ensaio. Ante minha resposta afirmativa, ela me mandou o seguinte ensaio:  

"Do Devaneio Estético ao Delírio Tecnosexual: uma leitura comparativa dos contos Diva (1983) e Ferro na Boneca (2025), de Elmar Carvalho

Elmar Carvalho, escritor e magistrado piauiense, apresenta em sua obra uma rica e multifacetada visão da condição humana. Dois de seus contos, separados por mais de quatro décadas de produção literária, ilustram de forma singular a evolução de sua escrita e a transformação do imaginário coletivo sobre erotismo, solidão e loucura. Diva, publicado em 1983, e Ferro na Boneca, escrito em 2025, funcionam como espelhos contrapostos de um mesmo drama: o amor impossível e a busca desesperada por um ideal feminino.

Em Diva, o protagonista é um homem obcecado por esculturas femininas. Ele não busca o toque da carne, mas sim a contemplacão da forma. As mulheres não lhe interessam como pessoas, mas como estátuas vivas: beldades eternizadas, alheias às imperfeições do cotidiano. A escultura é tanto um objeto de desejo quanto uma metáfora da impossibilidade de realização afetiva. O conto está imerso em lirismo, entre fluxos de consciência e delírios poéticos. O erotismo é sugestivo, envolto em simbolismo, próximo da tradição modernista que flerta com o surreal.

Já em Ferro na Boneca, temos um mergulho direto na psique de um homem comum, José Silva Sousa, que, privado de vínculos afetivos, adquire uma boneca sexual de tecnologia avançada. O erotismo aqui é cru, descritivo, sem pudores. Se em Diva a mulher é de pedra, fria mas sublime, em Ferro na Boneca ela é de silicone, quente mas programada. Ambas, porém, são inacessíveis: uma por ser idealização estética; a outra, por ser uma simulação tecnológica.

O autor, em 1983, era um jovem literato, influenciado por estéticas modernistas e simbolistas, ainda marcado por certo romantismo decadente. A forma é menos direta, mais contemplativa. Em 2025, à beira dos 70 anos, Elmar Carvalho revela-se mais desencantado e corrosivo. A ironia é evidente, o realismo é sujo, a narratologia se faz metalinguística: o narrador declara não querer enveredar pelo metaconto, mas flerta com ele. O texto é marcado por um humor ácido e uma crítica velada à hipermodernidade.

Ambos os contos tratam da solidão masculina e da busca por um corpo feminino idealizado. Em Diva, o corpo é sagrado e inalcançável; em Ferro na Boneca, é acessível demais, a ponto de se tornar objeto de possessão ciumenta. A tragédia final do segundo conto, com assassinato e suicídio, é a culminância grotesca de uma paixão deformada pela impossibilidade do afeto real.

Do ponto de vista estilístico, nota-se a evolução do autor: da prosa poética e nebulosa para a escrita mais crua, narrativa, reflexiva, com pinceladas de sarcasmo. A maturidade literária aqui não significa apenas técnica, mas também um olhar mais crítico sobre o humano.

Assim, Diva e Ferro na Boneca se completam. O primeiro revela o sonho estético de um jovem autor. O segundo, a lucidez cruel de um escritor maduro, que percebe que o desejo, quando desprovido de encontro e humanidade, pode levar à barbárie. Neles, Elmar Carvalho retrata as dores da alma masculina em tempos tão distintos quanto semelhantes, com um dom raro de unir poesia, crítica social e tragédia humana."   

domingo, 27 de julho de 2025

NA NOITE

 

Criação: ChatGPT

NA NOITE


Elmar Carvalho

 

Na noite

um sapo coaxa.

Uma puta triste

acha graça. Acha graça.

Um galo

às desoras desfere um canto

fora de hora. E chora.

Um cão ladra por nada:

nenhuma cadela no cio.

O silêncio

grita como louco

na concha acústica

dos labirintos dos ouvidos moucos

por onde um Teseu lasso caminha

em busca do Minotauro – perdido

sem o fio de Ariadne –

conduzido por outro fio

que parte / se parte e

se reparte entre o ser

e o não ser.

E os gritos de Teseu

arrancam ecos

que já ecos de si mesmos

se repetem se repetem

até a mais completa

absoluta exaustão.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Visita ao Gabinete de Leitura

Manuel Domingos visto por Gervásio Castro



Visita ao Gabinete de Leitura

 

Elmar Carvalho

 

Alguns meses atrás, ao fazer uma pesquisa sobre o Almanaque da Parnaíba, senti falta, em minha biblioteca, de seu exemplar de 1985, 60ª edição, que foi publicada graças ao esforço de Manuel Domingos Neto, após o falecimento de Ranulpho Torres Raposo, que lhe publicou 40 edições (1942–1981). Essa edição de 1985 me era especialmente cara, uma vez que auxiliei o professor Manuel Domingos em sua organização, conforme consta em sua orelha.

Gentilmente, o editor me prometeu que me daria um exemplar. Como se trata de uma raridade e de grande valor afetivo para mim, disse-lhe que o receberia de suas mãos, quando fosse a Parnaíba. Tendo vindo a esta cidade no sábado passado (19/07/25), combinei que o receberia na terça-feira, dia 22, entre as oito e nove horas.

Às oito horas cheguei ao local. Fui recebido por Luanni Machado. Enquanto esperava meu anfitrião e cicerone, tratei de ver antigas fotografias, móveis, utensílios e outros instrumentos, entre os quais dois pianos, muito bem conservados e em perfeitas condições de uso.

Terminei viajando na memória, retornando ao tempo em que fixamos residência em Parnaíba, em 1975. Nessa época, o escritório de representação comercial de Ranulpho Torres Raposo se encontrava em pleno funcionamento. Tinha (ou tivera) filiais em Fortaleza, Teresina, São Luís e Belém.

Como que vi ressurgir o velho mestre da Escola União Caixeiral, Joaquim Furtado de Carvalho, postado diante de uma escrivaninha, a fazer os registros contábeis dessa firma, que funcionava nesse local. Era primo legítimo de meu pai. Falava com fluência o inglês. Tinha certa erudição, mas, sobretudo, era um atraente conversador, um verdadeiro causeur.

Embora celibatário, era um admirador da beleza feminina, sem dúvida, como se pode depreender destes seus versos, publicados no Almanaque da Parnaíba, edição nº 50, ano 1973, no poema Banho de Mar:

Quantas lembranças de momentos tais,

Veras saudades, as chamadas roxas,

Quisera que sonhos bons fossem reais,

No desfilar de tantas belas coxas.

 

Logo Manuel Domingos chegou. Explicou-me vários detalhes e me mostrou alguns móveis e fotografias que julgava mais relevantes. Nas paredes do recinto principal estavam afixadas várias imagens de seu avô, que cheguei a conhecer na segunda metade dos anos 1970. Cheguei a publicar um poema no Almanaque, no período em que ele ainda estava sob sua responsabilidade.

Acima das antigas prateleiras de livros — que Manuel recuperou sem ajuda institucional — encontravam-se fotografias de autores da literatura universal, cujos livros estavam disponíveis nas várias estantes. De repente, recendeu um agradável aroma de café, que tomou conta do ambiente e me inebriou. Era um café forte, encorpado no ponto certo, que Luanni preparara. Como se fora um néctar, o degustamos lentamente, para melhor lhe apreciar o sabor.

Na parede estavam expostos excelentes cartazes, com belas fotografias e ilustrações, em que, de forma concisa, a história do Almanaque era contada. Benedito dos Santos Lima, o Bembém, seu fundador, e Ranulpho Torres Raposo, seu editor durante 40 anos, eram homenageados — como bem merecem. Também foram citados os principais colaboradores do anuário, entre os quais menciono os seguintes:

Martins Napoleão, Felix Aires, Ademar Neves, Jonas Fontenele da Silva, Nogueira Tapety, Renato Castelo Branco, Possidônio Queiroz, A. Tito Filho, H. Dobal, Fontes Ibiapina. E, como não poderia deixar de constar no rol acima, R. Petit (Raimundo de Araújo Chagas), “o mais longevo e prolífico” dos colaboradores do Almanaque, que contribuiu com seus belos poemas para o engrandecimento do anuário desde os seus primórdios — até mesmo depois de seu falecimento. Aliás, recentemente um neto do bardo, o advogado Filadelfo Chagas Barreto, escreveu uma excelente biografia sobre o grande Petit, que tem quase o sabor de um romance.

Após ter viajado na memória, através de minhas lembranças e da arquitetura do prédio — com a textura incomum de sua fachada, os belos desenhos dos mosaicos, os antigos móveis —, viajei pelos acordes do piano, dedilhado por Manuel Domingos Neto, que executou uma peça erudita e uma valsa de Pixinguinha.

A valsa me fez lembrar os tempos em que meu saudoso pai ouvia magníficas músicas da velha guarda, num rádio de pilha, à boca da noite, através da Rádio Sociedade da Bahia, no programa Gramofone da Vovó, apresentado pelo locutor Jaime Farrel. Senti como se meu pai ali estivesse presente, a ouvir a bela melodia, uma de suas prediletas.

Ouvindo a exímia execução de Manuel Domingos e vendo sua notável habilidade no dedilhar das teclas, aplaudi sua performance e não me acanhei de lhe perguntar como aprendera sua arte pianística.

Ele me respondeu que, bem no início, tivera uma professora, que depois deixou de lhe ministrar lições porque já não tinha mais nada a lhe ensinar, uma vez que ele aprendia com muita rapidez e ainda tinha a ousadia de adicionar improvisos que não estavam na pauta.  

domingo, 20 de julho de 2025

INSÔNIA

Criação: IA Gemini

 

INSÔNIA


Elmar Carvalho

 

No silêncio abissal

da noite estagnada

a engrenagem pesada

do tempo se desenrola

e desaba sobre mim.

 

As botas cadenciadas

das horas marcham

– lentas lesmas –

marcham infinitamente

na noite sem fim...

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Ser ou não ser

Criação da imagem: GPT

 

Ser ou não ser

 

Elmar Carvalho

 

No capítulo VII, intitulado Existência: a medida de si mesmo, do excelente livro Descobrindo Saturno, sobre o qual já emiti comentário, de autoria do cientista Gildário Lima, físico e matemático, em determinado ponto o autor propõe ao leitor que responda a estas duas perguntas:

“1. Você existe? (sim ou não)

2. Por quê? (disserte com liberdade e verdade)”.

Tentarei respondê-las.

À primeira, respondo que sim. Quanto à segunda, além de sua complexidade em si mesma, há ainda a recomendação de que a dissertação seja feita “com liberdade e verdade”. Sinto-me livre para respondê-la a meu modo, sem peias e com as minhas idiossincrasias. Com relação à verdade, direi que ela é tão importante, que Jesus afirmava não apenas estar dizendo a verdade, mas que Ele era a própria Verdade — Ele, que era e é o Verbo divino e da criação.

De imediato, lembrei-me do filósofo René Descartes, que cunhou a famosa frase “Penso, logo existo”, elegantemente expressa em latim: Cogito, ergo sum. Mas logo cogitei: e uma pedra, que não pensa, não teria existência? Ante essa cogitação, lembrei-me de uma anedota envolvendo o pensador, ensaísta e crítico literário Samuel Johnson.

Relata-se que Johnson teria dado uma pretensa “resposta prática” ao idealismo filosófico de George Berkeley, segundo o qual a matéria dependeria da mente para de fato existir, já que tudo o que percebemos como realidade física dependeria da percepção e da mente para efetivamente existir. Samuel Johnson, considerando absurdo esse idealismo, teria dito: “Refuto assim o idealismo de Berkeley” — e, em seguida, desferiu um forte chute numa pedra, exclamando: “Sinto dor!”

Quanto ao comportamento, tido por alguns como estranho, da física quântica — em que partículas ora existem e ora deixam de existir, ora aparecem em mais de um ponto ao mesmo tempo, em que o microcosmo muda conforme é observado, e em que vigora o chamado Princípio da Incerteza —, um pregador dos dias atuais bem poderia encenar a anedota de Johnson e repetir: “Refuto assim a física quântica”, dando um bruto pontapé numa pedra, com o devido cuidado para não se machucar — e, assim, não sentir dor.

Ou poderia seguir o exemplo de Einstein, que não acreditava na natureza probabilística da mecânica quântica, preferindo crer num universo determinista, regido por leis precisas, e bradar com o gênio da física: “Deus não joga dados”. De minha parte, que não sou físico, mas acredito em Deus, diria que o Princípio da Incerteza é o princípio da certeza da existência de Deus — e que esse é o campo reservado aos milagres e às intervenções diretas de Deus.

As duas indagações de Gildário também me conduziram à famosa frase proferida por Hamlet, personagem da obra teatral de William Shakespeare:

“Ser ou não ser, eis a questão.”

Sobre ela, no entanto, não me deterei.

Em Êxodo, quando Moisés perguntou a Deus qual nome deveria dar-Lhe, Ele respondeu:

“Eu sou o que sou.”

Penso que essa pequena frase resume tudo: Ele é a suprema existência, da qual todas as demais dependem. Ele é o incriado Criador de tudo o que existe. Todo-Poderoso, Onipotente e Onisciente. Eterno e Infinito. Imensurável medidor de tudo. Em resumo: Deus é a essência da vida, fonte de todas as demais vidas. Origem e sustentação do ser.

Quando menino, ouvi meu pai conversar com alguém — talvez minha mãe — sobre os mistérios da eternidade e da infinitude, e fiquei, desde então, abismado e fascinado com o significado de tão incomensurável conceito.

No meu poema “Deus, deuses e o nada”, cometi a vã loucura — que nem Agostinho ousou realizar — de tentar provar a existência de Deus. Primeiro com um sofisma, em que imaginei uma cadeia infinita de deuses, em que um criava o outro sucessivamente, até chegar ao primeiro. Então concluía, como consequência lógica: se o primeiro Deus criou um deus, ele não precisaria de deuses intermediários para criar tudo o que existe.

Nesse poema, afirmo que às vezes penso que a realidade não passa do sonho de um deus — e que esse deus, sonhador e sonhado, seria eu.

Afirmo que o nada não pode criar coisa alguma. E que, se o nada criou tudo o que existe, esse nada seria um deus — para o qual eu tiraria, em reverência, o meu chapéu, que sequer tenho.

 

Sintetizando minha resposta às perguntas de Gildário Lima: sou um ser criado pelo Deus que disse: “Eu sou o que sou.”

Sou um pequeno ramo de existência da videira que é Deus, da qual todos os ramos dependem.